DESVIAR DO GÊNERO, ESCAPAR DA FÓRMULA:
O CURTA-METRAGEM EM SEUS MODOS DE NARRAR
Em 2024, o texto conceitual da Mostra de Curtas da CineBH, assinado por mim e Marcelo Miranda, propunha justamente a questão: “O que pode um curta-metragem hoje?”. Era uma provocação brusca, disparadora, mas também razoavelmente incipiente. De cara, sabia-se que não haveria resposta. Ou melhor, sabíamos que haveria mil respostas cabíveis. A questão, porém, servia como mote: liberar o olhar do curta-metragem para suas abordagens ficcionais mais interessantes naquele momento. Em um contexto do cinema brasileiro onde o documentário tomou desdobramentos importantes, nos parecia que a CineBH era um cenário ideal para lançar olhar às ficções, prezando por filmes que, bem ou mal, traziam na sua encenação, decupagem e construção dramática um desejo, ao fim e ao cabo, de narrar. Acima de tudo, eram trabalhos preocupados em orquestrar um mundo inconfundível ao seu redor, um mundo de falseamentos, com dispositivos próprios para tal.
Voltando algumas casas, e observando bem o trajeto desempenhado pelos filmes anteriormente exibidos, nessa Mostra ou em outras ocasiões, surge a impressão de que é preciso começar a costurar o olhar entre esses dois mundos, o documentário e a ficção. Mais do que isso, é preciso provocar o encontro entre esses dois rótulos estanques para procurar entender que choque esse encontro efetua no corpo fílmico. Tentar destravar as amarras que tais definições, muitas vezes imprecisas ou demasiado formais, deixam já de largada aos seus objetos. Sendo assim, o que está em jogo na seleção de curtas da CineBH 2025 é, mais do que o desejo de narrar através da ficção, conforme exposto na última edição, é justamente a possibilidade de imaginar e de tensionar a narraçãopor meio do desvio do gênero. Narra-se como, por quê, a partir de onde? Narra-se com personagem, com o espaço, com a câmera? Narra-se com tudo isto, mas tudo isto leva a qual lugar exatamente?
A essas perguntas, não procuro exatamente resposta, mas sobretudo mais e melhores perguntas. Ou mesmo, procuro oferecer programas que, alicerçados em temas específicos e repetidamente trabalhados pelos filmes inscritos, abram brechas para se imaginar respostas intransigentes, sem rótulos estanques, e sobretudo possíveis. Demonstrações de uma realização cinematográfica em curta-metragem que diga respeito àquilo que se faz com o que se pode, na variedade de valores de produção, financiamento, suportes, línguas e sotaques. É uma tentativa de, em última análise, propor um caminho, uma travessia factível, entre objetos tão vizinhos e ao mesmo tempo tão remotos. Um caminho para se imaginar, longe das definições, mas próximo sobretudo aos filmes e seus ecos internos, uma visão sobre os espaços, as familiaridades e as ancestralidades.
Na primeira sessão, há uma fricção entre os corpos urbanos. Tema rotundamente replicado, a vivência atravessada pela história dos territórios está cada vez mais implicada numa lógica contemporânea do cinema brasileiro – por exemplo, é impossível pensar o cinema da Filmes de Plástico sem pensar em Contagem, é impossível pensar em Alumbramento sem pensar em Fortaleza, é impossível pensar Adirley Queirós sem pensar na relação Ceilândia/Brasília e vice-versa. Dessa forma, toma-se o primeiro desenho a partir das vias do deslocamento pelo espaço urbano, dos centros aos interiores, das beiras às margens. A ideia de caminho pela cidade está desenhada em filmes como Sutura(MG), Goiânia: Notas Pendulares(O. Juliano Gomez, GO)e Desvios Diários: Domingo(Bruno Risas, Diadema, SP).Filmes que se apresentam com características documentais, mas que confundem o espectador diante daquilo que se pode entender como personagem. A lógica do tempo e do andejar cruza-se com a visão da geografia e seus modos de filmar o espaço. Nesses curtas, relações de poder, hierarquias e distâncias sociais estão expostas. Mesmo que isso não se dê a ver, a princípio, de uma maneira necessariamente óbvia. Antes, o programa é um convite a presenciar os trajetos, com suas belezas e dissabores, procurando melhor adentrá-los. Há também dois trabalhos, Lagoa Armênia(Leonardo da Rosa, RS)e Jamais Visto(Natália Reis, Juiz de Fora, MG),que esgarçam a lógica da visão panorâmica do segmento urbano. De modos opostos – um sobrevoa o tempo, literalmente, enquanto o outro o dilata e transforma, inclusive em matéria de imagem –, ambos filmes veem no potencial do cinema, pela ótica da operação na linguagem e da deformação das formas, um modo de reivindicar a urbe a contrapelo. Não estão rotulados como tal, mas são documentários/experimentais que, a seus modos, e à guisa de como fundamentam as ferramentas de dominação que define a cidade, revelam-se filmes como de gênero, da ficção científica ao horror, justamente através suas disfunções e contravenções narrativas.
O programa seguinte volta-se às constelações familiares. A maternidade aparece como ponto forte, mas não completamente sozinha. Presenças femininas são ressaltadas, desde a lógica da entrevista, com seus desdobramentos espirituais, até o processo de encenação. Há também a figura masculina, com mistérios e ausências, com sua força particular, proveniente inclusive da falta e do seu horror peculiar. Numa lógica de programação que esboça desarranjos entre o olhar para a realidade e o encenar esse olhar, filmes como Sebastiana(Pedro de Alencar, RJ),Três(Lila Foster, DF),Aparição(Camila Freitas, BA),Mãe de Ouro(Maick Hannder, MG) conjugam operações unívocas em suas estruturas. Há, respectivamente, tensão e atenção por meio de arquivos; exposições da maternidade através do estatuto contemporâneo daquilo que é uma “família”; legados etéreos e contravenção dos dispositivos pela lógica do espírito; além de captura e registro singular da estrutura personagem/mãe diante da câmera. São proposições possíveis, em desenhos robustos, complexos em suas costuras, sobretudo nas montagens, daquilo que pode significar uma relação familiar. Destaca-se também a variedade regional, do Centro-Oeste ao Nordeste, onde a noção sanguínea se estende por dessemelhantes geografias, moradas e composições. Do urbano ao interiorano, o significado de família, em cinema, e sobretudo nas narrativas curtas brasileiras, encontra ecos viáveis ao redor desses filmes.
Em consonância com as temáticas do espaço e da familiaridade, o programa derradeiro desta edição traz em seu recorte o ato de escutar. Dois Nilos(Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro, RJ), Confluências(Dácia Ibiapina, DF) e Terra Mãe Mãe Terra(Júlia Mattar, MG)possuem em comum o anseio em registrar o outro. Contudo, mais que um gesto de suposta alteridade, esse registro é empregado através de interesse genuíno pelas figuras que capta. Os personagens contidos nesses filmes carregam, por si só, uma história particular em suas áreas de atuação e de pensamento. Desde Afrânio Vital, figura primordial do cinema (negro) brasileiro até o recentemente falecido Nego Bispo, filósofo, poeta, escritor e líder quilombola. Além disso, há também as figuras coletivas, como aquelas presentes no curta mineiro, cuja construção aborda, em uma noção particular de tempo e mise-en-scène, a comunidade indígena Warao, em sua luta pela justa ocupação de terras em Betim. Mais que nada, é preciso entender que, diante do outro, esses filmes são capazes de capturar mais que o espaço que seus personagens habitam, construindo ecos com os programas anteriores, mas sobretudo estão implicados em importar e erigir uma temporalidade particular (por meio da suspensão da realidade ou da permanência atenta da câmera nos lugares) a cada uma das figuras e comunidades registradas. Mais que documentários, são peças cênicas de força impressionante, que acessam facetas diversas da linguagem cinematográfica, em sua invenção e paciência particular, para mais junto de seus personagens poder revelá-los. São filmes para além de seus registros de gênero, que mais que “documentar” o real preocupam-se em experienciá-lo através do cinema.
Finalmente, a última sessão de curtas da 19ª CineBH é a já estabelecida programação de Curtas no Almoço. Diante do desenho imposto pelos filmes nesta edição e do sobrevoo captado pelos três programas noturnos – direcionados ao estudo do espaço, da família e do tempo nas ancestralidades – parece inescapável encerrar este recorte de filmes sem falar justamente daquilo que renova as bases da imaginação no cinema e na vida.
Em um contexto onde cada vez mais novos diretores e diretoras emergem, numa catapulta sem fim de obras feitas, um olhar para a juventude interiorana do agora sugere, em mão dupla, que há reservas de imaginário possíveis a partir de gente em suas primeiras produções. Realizadores trabalhando muitas vezes com atores e temáticas alicerçadas nos períodos da infância e pré-adolescência, em geografias razoável ou extremamente remotas no contexto do cinema brasileiro, enxergam nas transformações das formas e dos personagens seu modo de ver o mundo. Com caráter lúdico e mistura de técnicas, variando da animação aos filmes de trama mais clássica, os curtas do meio-dia têm nos seus personagens a força maior. A pré-adolescência como descoberta afetiva, da cidade, do amor e do horror, surge em filmes como Bailinho(Gabriel Vieira de Mello, Assis/SP), Entre Aulas (Marizele Garcia, Bagé/RS) e Marmita (Guilherme Peraro, Assis/SP). Enquanto há a reverberação da idade nesses filmes, os trabalhos animados Kabuki (Tiago Minamisawa, SC), Pequeno B (Lucas Borges, Juiz de Fora/MG) e Moscou (Victória Correa Silva/MG)costuram pelas suas variáveis técnicas e criativas as transformações/passagens da vida, sejam elas condizentes ao gênero, à idade ou ao processo de amadurecer.
Em resumo, mas também na prática, o que se espera de quem visita os filmes da 19ª edição da CineBH é justamente que esse espectador encontre, antes mesmo das respostas ou das atrações, um cenário imaginário diverso, distante dos rótulos, que apresenta obras onde o gesto de narrar – para frente e para trás, distorcendo o tempo, rebobinando o presente pelo passado, sujando a tela – esteja substancialmente presente, fazendo-se existir para muito além de uma apresentação prévia; para muito além da casca dos filmes.
Rubens Fabricio Anzolin
Curador