EVOÉ, ZÉ CELSO! | UM TRIBUTO AUDIOVISUAL A JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA

Em 6 de julho de 2023, o Brasil perdeu um de seus maiores artistas: José Celso Martinez Corrêa. O impacto dessa partida fez ressurgir lembranças, registros, históricos e reaproximações a partir de sua obra, essencialmente teatral e incontornavelmente iconoclasta. Símbolo do Tropicalismo, Zé Celso revolucionou os palcos, formou centenas de atores e atrizes e moveu a cultura sempre pelo viés crítico, libertário e questionador. Sua passagem pela Terra também incluiu o cinema, forma de expressão da qual Zé Celso era grande admirador, deixando nela contribuições fundamentais. A Mostra Diálogos Históricos desta 17ª CineBH é dedicada à presença de José Celso Martinez Corrêa no cinema. Vários foram seus trabalhos na área, então o recorte de três obras é apenas representativo de três facetas a impregnar as telas com sua presença vulcânica. 

A primeira delas é Prata Palomares (1970), longa-metragem dirigido por André Faria Jr., que teve Zé Celso como roteirista, no primeiro trabalho dele diretamente feito para cinema (já que, em termos de audiovisual, ele já tinha filmado alguns dos espetáculos do Grupo Oficina). Eram tempos difíceis no país, com a ditadura militar no ápice. No filme, além do roteiro de Zé Celso, há participação de atores do Teatro Oficina e de toda uma filosofia de performance que era importante ao grupo. No enredo, dois guerrilheiros em fuga se escondem na igreja de uma pequena cidade. Um deles (Renato Borghi) se disfarça de padre enquanto o outro (Carlos Gregório) prepara uma rota de fuga. Porém, o primeiro aos poucos adentra por demais o personagem e rompe com a guerrilha, acreditando que a religião pode ser um ponto de salvação. Tudo isso em meio à montagem inventiva de João Ramiro e Amauri Alvez, a cenas entre o real e o delirante e à presença de nomes como Ítala Nandi e Otávio Augusto completando o elenco. Pelo teor crítico ao totalitarismo político e à prática da tortura institucionalizada pelos militares, Prata Palomares foi perseguido pela censura e proibido por cinco vezes de ser exibido no Festival de Cannes. Só em 1977 foi liberado para o exterior e, em 1979, competiu e ganhou prêmios no Festival de Brasília.

No começo da década seguinte, Zé Celso assinou seu único longa-metragem como diretor, em parceria com Noilton Nunes: O Rei da Vela (1982). O título tem por referência a famosa adaptação do Teatro Oficina em 1967 da peça original de Oswald de Andrade, de 1933. O espetáculo também foi censurado pela ditadura e somente voltou aos palcos em 1971, quando Zé Celso passou a filmar algumas das apresentações no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Esses registros audiovisuais se perderam por anos, depois que o dramaturgo precisou se exilar fora do Brasil para escapar da violência dos militares. Ao retornar no começo dos anos 1980, Zé Celso se juntou a Noilton Nunes para montar o que viria a ser o longa O Rei da Vela. Em 150 minutos, é um dos registros mais impressionantes das possibilidades tropicalistas que um filme pode proporcionar e um modo singular de refletir a complexidade e as contradições do Brasil. Foi lançado mundialmente no Festival de Berlim e teve circulação celebrada em diversos festivais brasileiros e mundiais. Como escreveu o crítico Carlos Alberto Mattos em 2020, “O Rei da Vela é teatro, performance, happening, artes plásticas, cinema de montagem, documentário. Um vendaval barroco”. 

Fechando a Mostra Diálogos Históricos, o público pode conferir um filme contemporâneo com presença de corpo, voz e alma de Zé Celso. O documentário Fedro (2021), de Marcelo Sebá, reúne o dramaturgo a um de seus antigos pupilos, o ator Reynaldo Gianecchini. Os dois não se encontravam há duas décadas, desde quando este último se desligou do Oficina. Num apartamento, acompanhados apenas pela pequena equipe de filmagem, Zé e Reynaldo falam sobre arte, vida, corpo, sexo, gozo, política e outras intimidades. Desnudam-se (não sem alguma inibição do hoje ator global, o que vira elemento-chave ao filme), provocam-se, tocam-se, numa comunhão de afetos ainda mais comovente diante do atual contexto da ausência abrupta de Zé Celso. Essa trinca de filmes, se não esgota o tamanho de Zé Celso nos palcos ou nas telas, expande no público a compreensão do gigantismo desse artista e o quanto ele extravasava quaisquer dos espaços que ocupou. É a maneira da CineBH trazer Zé Celso para um pouquinho perto de seu público.

Marcelo Miranda
Curador