Interseções, mergulhos, gestos e subjetividades

Num cenário sempre estimulante de novas descobertas e constantes surpresas, escolher curtas e médias-metragens para um festival como a Mostra CineBH é um desafio sempre bem-vindo, mais ainda num ano em que novamente são discutidas as relações entre o Brasil e seus vizinhos da América Latina. Se a seleção não necessariamente se pautou por isso, ela acabou por se relacionar diretamente à temática e aos caminhos gerais, por justamente estar em contato com outras obras, imaginários e estímulos do continente – afinal, a América Latina também somos nós.

O conjunto de realizadores reunidos nas sessões em 2023 articulam experiências fílmicas da espacialidade urbana e de paisagens interiores de um país plural, abordam questões sociais urgentes e promovem mergulhos profundos em subjetividades diversas. Para ecoar a temática geral da CineBH deste ano, a territorialidade desses filmes é tanto geográfica, por estar fincada na língua, na vivência e nos espaços brasileiros, quanto afetiva, por remeter a processos internos de personagens, situações e registros que fazem parte de mapas interiores únicos.

Na Série 1, Não Há Coincidências Ocupando Esta Carne, da mineira Júlia Elisa, mescla as linguagens do videopoema e da performance em digressões a entrelaçar traumas históricos e contemporâneos, numa modulação propositiva para trazer os respiros possíveis à vida por meio da arte. Também de Minas Gerais, Lombrado, de Ítalo Almeida, é uma ficção que, em seu realismo, mostra a vivência de jovens de periferia em dilemas cotidianos na lida pela sobrevivência enquanto buscam por seus sonhos. Por fim, Remendo, filme capixaba dirigido por Roger Dhil (GG), ginga, com ironia e atrevimentos formais, nas contradições de uma sociedade que despreza a permanência, ao mesmo tempo em que apresenta a complexidade subjetiva de um sujeito que insiste, como define uma das personagens do filme, em “remendar as coisas que não têm mais jeito”.

A Série 2 tem Minha Vó Viajou pra Fora, documentário de João Pedro Diniz que, com singeleza, humor e ternura de quem observa a avó dentro de casa, mostra o prenúncio da aventura de uma senhora que precisa sair do país. Também documental, Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando tem direção coletiva de Aida Harikariyoma Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yanomami e é falado em idioma nativo. O filme apresenta, de um ponto de vista muito particular, o mergulho ao mesmo tempo subjetivo e coletivo numa prática xamânica tradicional da aldeia. Até a Luz Voltar, curta goiano dirigido por Alana Ferreira, acompanha a expectativa de uma mulher trans em processo pré-operatório de readequação sexual, que se apoia no amor e na religiosidade. Por fim, o mineiro Big Bang, de Carlos Segundo, produzido em Uberlândia, traz modulações de ambiguidades e resistências nos limites de uma vida precarizada, a partir da história de um homem com nanismo que, em sua difícil rotina de trabalho como limpador de fornos, sofre preconceitos e abandonos que geram nele sentimentos de força e também de vingança.

Na Série 3, o carioca Deixa, de Mariana Jaspe, tem a grande Zezé Motta no elenco e apresenta o drama de uma mulher que, diante do retorno do marido, vê-se reinserida numa vida que não lhe faz mais sentido. Também do Rio de Janeiro vem Casa Segura, de Allan Ribeiro, filme a narrar as angústias de um homem temeroso da violência urbana que cria um verdadeiro bunker onde mora, mergulhando na introspecção cada vez mais solitária de um afastar-se da vida em nome de uma certa ideia de proteção. No fim da sessão, a produção mineira Febre, dirigida por Márcio Abreu, carioca radicado em Curitiba, foi feita em parceria com integrantes do Grupo Galpão e é um experimento fílmico que vai fundo na vertigem febril e nos limites existenciais disparados pelo impacto da pandemia e pela sensação de mundo em crise compartilhada por tanta gente há bem pouco tempo.

Seguindo a tradição da CineBH de exibir filmes curtos no começo da tarde, a sessão Curtas no Almoço começa com Nossos Passos Seguirão os Seus, fabulação documental dirigida por Uilton Oliveira que apresenta, em arquivos e performance, a história e presença de Domingos Passos, filho de ex-escravizados, anarquista e militante do movimento operário no início do século XX, numa curva do tempo que aproxima lutas do passado e do presente. Por sua vez, o cearense Mecanismo, de Isaac Morais, Gabriel Lima e Maria Beatriz, organiza-se com vigor experimental e irônico para dar a ver, através do mecanismo de distopia, uma crítica ao uso antissocial de avanços tecnológicos. De Minas Gerais, Sala de Espera, dirigido por Paula Santos, tem a imersão no tempo particular da vivência de uma mulher entre seus hábitos ritualísticos de segurança e o desejo de novos destinos, numa percepção de que nem sempre a fuga é uma saída imediata. Por fim, Temos Muito Tempo para Envelhecer, mais um mineiro, desta vez realizado entre Cataguases e Juiz de Fora e assinado por Bruna Schelb Corrêa, propõe um afastamento temporal do recente passado pandêmico para transformar em memória, algumas vezes lúdica, os traumas coletivos a partir do relato de uma garota que, sem saber, é capaz de moldar novos mundos.

Tatiana Carvalho Costa
Marcelo Miranda
Curadores