De 29 de setembro a 13 de outubro, um recorte especial da 19ª CineBH está disponível na plataforma Itaú Cultural Play.
AS VÁRIAS VIAGENS NAS REDES DO ITAÚ CULTURAL PLAY
Os filmes presentes na plataforma Itaú Play deste ano, em parceria com a 19° CineBH, trazem características recorrentes entre si. São trabalhos que experimentam com o espaço a partir de variadas frentes na matéria cinematográfica. Oriundos de paisagens distintas, os longas Lagoa do Nado – A Festa de um Parque (Arthur B. Senra/MG) e Meu Pai e Eu (Thiago Moulin/ES) e os curtas Lagoa Armênia (Leonardo da Rosa, Taquari/RS), Marmita (Guilherme Peraro, Assis/SP), Aparição (Camila Freitas, BA) e Jamais Visto (Natália Reis, Juiz de Fora/MG)carregam o movimento de pêndulo entre o memórias, urbanidades, centros e periferias das imagens em suas composições.
A estreia em longa de Thiago Moulin Meu Pai e Eu, apresentada na mostra competitiva “Arquivos em Questão” da CineOP 2025, propõe outro olhar para os enigmas de laços familiares. Seguindo a linha de documentários que transformam registros caseiros em vestígios de incertezas, o filme mergulha em arquivos pessoais – cartas, fotografias, gravações – para dar corpo a um gesto definitivo: o suicídio do pai do cineasta. A narração em primeira pessoa evita explicações lineares, preferindo abrir espaço para a dúvida e para a percepção íntima do silêncio masculino. O pai escrevia, mas continha; revelava-se em palavras, mas não em falas. Entre rastros e memórias, o filme não chega a respostas, mas produz uma escuta sensível para aquilo que permanece velado.
Assinado por Arthur B. Senra, Lagoa do Nado – A Festa de um Parque evoca a celebração e a música como instrumentos de resistência. O documentário rememora a longa luta pela criação do Parque Municipal Fazenda Lagoa do Nado, em Belo Horizonte. Concebido em 1984, mas só efetivado dez anos mais tarde, ali um grupo de ativistas transformou sonho e encantamento em armas políticas e culturais, em meio ao cenário social e ambiental da capital mineira. O ápice se dá em um show ao vivo, quando a multidão proclama em coro a força vital de seu desejo coletivo: “viva a vida!”.
O trabalho com ossatura dramática, entre as ficções no IC Play, é Marmita. Acompanha a construção de uma casa em um bairro da periferia, vista pela ótica de dois operários, Lourenço e Cícero. Tudo muda quando um garoto, Manchinha, começa a atormentar a vida da dupla. O moleque trabalha para o tráfico de drogas local, e impõe uma disputa pelas quentinhas dos trabalhadores. Manchinha quer comer, Cícero e Lourenço não querem dividir. Desse conflito relativamente estranho, pela disputa da fome, emerge uma decupagem que privilegia a sensorialidade das situações, reimaginando o terreno baldio em que o filme majoritariamente se passa como um deserto do western. Não existem exatamente heróis e vilões, mas sim vidas fragilizadas, tanto pela precariedade do trabalho como pela rotina da criminalidade. O espaço que parecia antes físico, brutal em sua concepção de trabalho, toma contornos de imaginação, muito por conta de uma união entre som e montagem que dão conta de descompassar as lógicas habituais da decupagem.
Se em Marmita o espaço está em disputa, em filmes como Lagoa Armênia e Jamais Visto o espaço é implodido. Ambos os trabalhos lidam com o gênero (ficção científica, horror) a partir da geografia das cidades. Lagoa Armênia observa os jovens do interior gaúcho, em Taquari, deslocando som a imagem de uma mesma rota. Conversam sobre um passado histórico e as entranhas da ditadura militar, tudo isso sem que vejamos ao certo seus rostos. Em seguida, somos submetidos à experiência neste mesmo espaço, quando os jovens decidem caminhar ao redor da lagoa em que o filme se passa. É uma operação que funde a um só instante tempo e espaço, pela sua demora no deslocamento e pela inversão imagética (o filme é feito com efeito sépia) empregada no ato de caminhar. Como se a Taquari moderna fosse um deserto, os quatro jovens caminham conquistando esse terreno, em busca do busto do ditador Costa e Silva, natural da região. É um trabalho que deve ser assistido até depois de seus créditos, onde a conclusão final narrativa revela-se.
Jamais Visto, assim como o curta gaúcho, também mexe com o tempo, porém de modo inverso. Se em Lagoa Armênia a relação é de esgarçamento da realidade, em Jamais Visto a hiper sensorialidade toma conta. Sobrevoamos imagens de Juiz de Fora, em tempos antigos, abordando sua construção e as relações de poder estabelecidas a partir do trabalho. Uma viagem de curta duração que, a partir da montagem e das operações experimentais, revela no olho do passado um dispositivo cruel de realidade. Em conformidade com obras anteriores de Natália Reis, é a manipulação imagética, na mesa de montagem, com caráter fundamentalmente experimental, que dá a ver nas fotografias do passado os ecos ficcionais do presente. Em sua simplicidade, o filme demove das imagens seus fantasmas para torná-las peças de um projeto político de gênero, em rotação sideral.
Por fim, Aparição, de Camila Freitas, estica a lógica documental da entrevista para acessar uma espécie de transe. Nesse sentido, é interessante notar como o espaço do plano e do quadro são explorados. A cineasta registra sua avó, resgatando histórias familiares e as relações espirituais dentre as mulheres de sua linhagem. Não o faz, porém, de modo ordinário. Na composição dos planos, na presença da natureza em forma de imagem, e sobretudo no modo como aborda a lógica das multitelas, o trabalho promove modos alternativos de se imaginar a mise-en-scène de uma geografia, e até mesmo de uma pessoa. A certa altura, o filme dobra suas telas, duplicando sua aposta no sentido da visão. Tal procedimento não esgota significados do que é enxergado, mas procura mediar um contato entre quem filma e quem é filmado, entre o espaço que se vê e o espaço que nos olha de volta, abrindo muito mais perguntas em uma viagem pelos sentidos do que respostas àquilo que busca capturar.
Diminuir os ritmos, subverter os campos, esticar durações e oferecer sensações amalgamadas e deformadas é aquilo que parece estar em jogo nestes filmes. Os filmes, ao seu modo, são uma viagem. Mais importante que a chegada, é fazer o caminho por dentro deles.
Rubens Fabricio Anzolin
Marcelo Miranda
Curadores