CARLOS FRANCISCO É UM MUNDO
Existem duas falas de Carlos Francisco em filmes recentes que mostram a dicotomia e a versatilidade deste grande ator e ilustram sua ternura, resiliência e rigor dentro e fora da tela.
Em Bacurau, no papel de Damiano, ele encara um invasor estrangeiro à comunidade onde vive e questiona, a olhar diretamente para a câmera: “Você quer viver ou morrer?”. Em Marte Um, interpretando o trabalhador Wellington, ouve do filho Deivinho sobre o sonho do garoto ser astronauta e responde: “A gente dá um jeito”.
As duas linhas de diálogo, respostas a estímulos externos aos quais os personagens em questão precisam reagir de alguma forma a seus interlocutores, tornaram-se momentos emblemáticos na produção brasileira contemporânea e têm no corpo, na voz e na expressão de Carlos Francisco um tipo de força cósmica que vai além do ordinário.

Ele nasceu em Belo Horizonte em 20 de dezembro de 1961. Iniciou sua trajetória artística no teatro amador nos anos 1980, onde sua primeira memória é de peças na casa do poeta Libério Neves, junto com amigos de infância. Ele e sua turma amigos montavam estruturas no quintal para encenar os textos e cobravam ingresso dos parentes, criando assim um ambiente lúdico e de aprendizado. A experiência inicial, ainda que informal, contou bastante ao desenvolvimento como artista. Ainda adolescente, participou de grupos teatrais na escola e fez experimentos para driblar dificuldades criativas, como substituir o tradicional trote universitário por uma apresentação teatral divertida.
Nos anos 1980, fundou um grupo teatral chamado Transarte, em parceria com Ricardo Figueiredo. Juntos, realizaram várias peças em Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que ele participava da primeira turma do NET (Núcleo de Estudos Teatrais), escola de formação de atores até hoje em atividade na cidade. Uma de suas primeiras direções foi o espetáculo Hoje é Dia de Rock, de Zé Vicente, que marcou o início de sua trajetória como diretor e consolidou um envolvimento intenso com o teatro local.
Em 1991, Carlos mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades. Trabalhou como vendedor de caminhões, mas nunca abandonou o sonho de ser ator. Durante o período na capital paulista, percebeu que, apesar de estar se saindo bem na venda de caminhões, o coração ainda batia pela arte. Essa consciência o motivou a buscar formação e aprimoramento. Foi quando descobriu a Oficina Cultural Oswald de Andrade e lá se inscreveu em várias atividades. Dedicou-se ao aprendizado de técnicas teatrais, desde interpretação até direção, e participou de cursos com diversos profissionais da área. Mergulhou na vontade de ser, de fato, um ator profissional e fazer disso seu ofício primordial.

O grande projeto na fase paulista é a fundação do Grupo Folias d’Arte, em 1997, junto a um grupo de parceiros com o intuito inicial de encenarem Folias Fellinianas, de autoria de Reinaldo Maia e de onde o coletivo tirou seu nome. Conhecido pelos espetáculo de engajamento político, o grupo seguiu atividades por anos adiante. No caso de Carlos, do teatro ele estreou nos cinemas aos 44 anos, em 2005, no longa-metragem O Casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto. Entre papéis coadjuvantes aqui e acolá, seguiu conquistando com carisma, consciência e postura como cidadão e artista. Das telas não mais saiu.
Nas registros como ator, Carlos Francisco dá a ver a própria ancestralidade, inclusive na condição de quilombola, para amplificar o impacto das atuações. Ele acredita que a formação quilombola influencia diretamente seu trabalho, trazendo uma forte conexão com a cultura e a oralidade. A vivência o ajuda a criar personagens profundos e sensíveis, que ele constrói em coautoria com os cineastas com quem trabalha – que, por sua vez, têm em Carlos a confiança de estarem diante de uma figura que existirá em plenitude para o filme no momento em que as câmeras são ligadas.
Carlos escapole dos estereótipos e faz figuras complexas, entre a dureza de contextos periféricos e a sensibilidade de afetos familiares. Sua presença carrega peso simbólico e político e soma ainda na construção de uma narrativa afro-brasileira por dentro do audiovisual do país. Vários de seus filmes nos últimos anos têm circulado mundo afora e ganhado prêmios importantes. Sua presença não é acaso nesses trabalhos e nesses reconhecimentos.
Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) levou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Marte Um (Gabriel Martins, 2022) colecionou passagens por festivais, foi sucesso de circuito e representou o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar de filme internacional em 2023. O papel de Wellington ainda lhe deu o prêmio de melhor ator no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Estranho Caminho (Guto Parente, 2023), no qual faz o papel novamente de um pai, dessa vez figura distante, misteriosa, pouco interessada em afetos, rendeu-lhe outro troféu de ator, dessa vez no Festival de Tribeca (EUA). Em O Agente Secreto (2025), novo trabalho de Kleber Mendonça Filho, vencedor de melhor direção no Festival de Cannes, Carlos Francisco está no elenco, dessa vez como um projecionista de cinema.

Repetir parcerias com cineastas em comum é algo já rotineiro para Carlos Francisco. O ator conquista os diretores com quem trabalha, que volta e meia o convocam para novos personagens, sejam de onde forem porque Carlos é do Brasil. Com a produtora mineira Filmes de Plástico, já fez diversos curtas-metragens, entre eles Nada (2047) e Rapsódia para o Homem Negro (2015), e o longa No Coração do Mundo (2019) e Marte Um (2022). Também em Minas, com Clarissa Campolina, está em Canção ao Longe (2022), e com ela mesma e Spergio Borges, Suçuarana (2024). O cearense Guto Parente o colocou em Estranho Caminho e em Morte e Vida Madalena (2025). Com o paulista Thiago B. Mendonça, está em Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita não é um Urso que Dança (2016) e Um Filme de Cinema (2023). E assim adiante, por vários outros e contando.
Carlos Francisco faz da mineiridade um traço universal e por isso não se fixa apenas em Minas Gerais. Ele amplia o escopo de sua presença e força para além de fronteiras estaduais e mantém, nesses movimentos, a essência singular que o caracteriza. Celebrar esse ator é celebrar suas origens, sua história e a de todo um universo de vivências e experiências carregado por ele em sua pele, sua voz, seus trejeitos, seu olhar e seus vários rostos possíveis. Carlos Francisco é um mundo.
Marcelo Miranda
Curador