MERCADOS EM TRANSFORMAÇÃO, REDES COLABORATIVAS E SOBERANIA NO AUDIOVISUAL FORAM DESTAQUES DA 19ª CINEBH
Publicado em 29 set 2025Terminada sua 19ª edição, a CineBH foi marcada pela tensão fecunda entre ambição estética e urgência política ao colocar no centro de seus debates a pergunta “Nós somos o nosso futuro?”, a partir do conceito de “horizontes latinos” que permeou a temática central. Ao longo dos encontros, rodas de conversa e debates, o evento tratou de quais modos de produzir imagens são compatíveis com soberania criativa, quais mecanismos de circulação são condizentes com coletividade regional e até que ponto o Brasil pode articular sua presença no circuito internacional sem perder traços de singularidade que fazem seu cinema tão único quanto o que qualquer outra país do continente.
O deslocamento de paradigma foi visível já na composição da Mostra Território, que impôs limitação clara, assumida e defendida pela curadoria: só receber cineastas com até dois longas anteriores, numa estratégia de renovação, e cuja centralidade de produção fosse necessariamente algum país da América Latina. Ao fazer isso, a equipe tentou favorecer uma “autonomia rebelde”, expressão usada pelo coordenador curatorial Cléber Eduardo, isto é, um cinema latino-americano que disputa o agora sem esperar concessões externas. Muitos dos filmes selecionados vinham de países ainda sub-representados e chegaram ao Brasil pela primeira vez via CineBH.
Esse horizonte teórico se materializou fortemente nos debates ao longo da mostra, com a presença dos realizadores da Mostra Território. Para Cléber Eduardo, fazer cinema na América Latina é um campo onde “pode-se ser tudo”, mas essa diversidade deve estar firmemente “escorada numa liberdade de determinar o que se quer ser, e não numa concessão ao que se quer de nós”. O resultado foi uma programação que valoriza o cinema que se constrói na lógica do acúmulo, dos desequilíbrios ou das quebras de ritmo, vendo esses elementos como escolhas do filme, e não como falhas.
Outras mesas aprofundaram a fronteira entre estética e política: “Filmar com o território” trouxe cineastas do Peru, México e Brasil para refletir sobre práticas de enraizamento, sustentabilidade e processos de mediação comunitária; “Conectar para criar: redes que transformam o audiovisual latino-americano” envolveu representantes de Colômbia, Cuba, Espanha, México e Brasil em uma interlocução direta sobre como pensar coproduções mais horizontais; e “Como internacionalizar seu filme” questionou criticamente o modelo “via Europa” e buscou alternativas de circulação direta entre países latino-americanos. O painel “Circuitos latinos: redes, resistências e circulação do cinema de autor” abordou as barreiras persistentes que o cinema latino sofre dentro do próprio continente, especialmente em relação a distribuição e circuitos menores.
Muitos dos filmes da mostra trabalhavam no limiar entre memória e ruptura, com arqueologias culturais, silenciamentos históricos e reconfigurações espaciais. Nisso, a CineBH propôs que o projeto de reativação simbólica se vinculasse à viabilidade concreta, ou seja, à própria existência dos filmes. Várias proposições lançadas nas conversas da CineBH esbarram na necessidade de articulação política fora do âmbito do festival. Leis, fundos, instâncias regulatórias e modelos de distribuição são pensados em conjunto para então se materializarem na prática. A dependência de programas públicos e a fragilidade estrutural do circuito de salas independentes, algo muito tocado por vários dos participantes, ainda são desafios que demandam esforços entre as várias esferas do audiovisual. Paulo Alcoforado, diretor-presidente da Ancine, estimula que seja cada vez mais entendido como estratégico e que cada departamento da cultura do Estado precisa fazer a sua parte.
A presença de tecnologia e inovação fez parte das conversas, com novas preocupações de impactos ao setor. A inteligência artificial foi um desses pontos na mesa “Audiovisual em transformação: inovações, desafios e caminhos para o futuro”. Para Lucas Taidson, professor e consultor em Comunicação e Inteligência Artificial, o uso da máquina é inevitável e incontornável, portanto a urgência está em saber como utilizar as plataformas de informação generativa de forma a usar o conhecimento humano de maneira otimizada e sem se render aos fetiches e seduções facilitadores que as bigtechs tentam impor. “A maneira como a gente vai usar essa tecnologia depende dos nossos parâmetros e isso a máquina não consegue controlar”, disse ele.
Thaís Olivier, vice-presidente da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (ABRA), é fundamental entender o tipo de impacto do uso de inteligência artificial como parte de novos processos criativos e estar atentos a questões de direitos autorais e de imaginação, de forma a não afetar o setor no uso indiscriminado e ilegal de conteúdos humanos que ocasionalmente são reapropriados pelos data centers.
O painel de abertura do Brasil CineMundi, que discutiu o audiovisual como projeto de país, estabeleceu o tom do seminário ao situar o setor em um momento decisivo e de inflexão para o cinema brasileiro. O papel estratégico do audiovisual foi várias vezes apontado para o desenvolvimento soberano nacional, no que a necessidade urgente de um marco regulatório para as plataformas digitais (VoD) e o fortalecimento de órgãos e políticas públicas são cada vez mais incontornáveis. Neste contexto de disputa por atenção e valor econômico, a defesa da democracia foi tratada como valor absoluto e condição fundamental para o desenvolvimento, sendo necessário que, para que essa democracia se efetive e o setor possa avançar, ele esteja permanentemente em estado de alerta contra retrocessos.
O marco regulatório do VoD e a valorização da diversidade regional, racial e de gênero como eixo estruturante de uma política forte do setor foram vistas como lutas a serem travadas com ainda mais energia. Diante dos atuais acontecimentos geopolíticos globais, a regulação foi ligada diretamente à defesa da soberania nacional. Durval Ângelo, conselheiro presidente do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG), defendeu a criação de um mecanismo de controle para o ambiente digital de forma a regular “o veneno que circula, e não o pensamento”. Disse ser necessário uma espécie de “Anvisa das bigtechs”.
O diretor da Ancine, Paulo Alcoforado, explicou que o desafio regulatório é complexo, pois plataformas de tecnologia atuam globalmente com custos amortizados, impedindo a competição de empresas nacionais. Para a deputada estadual Lohanna, a luta a ser travada é no Congresso Nacional, abraçando a questão da identidade nacional como ponto de partida, “Devemos ser contrários à colonização cultural. Não tem escritório americano que vai dizer norma aqui pro Brasil”, afirmou ela.
O Brasil CineMundi foi palco também da primeira mesa a discutir circulação e cooperação entre Brasil e países africanos. A conversa propôs um repensar de rotas, interesses e assimetrias que moldam os circuitos de distribuição no Sul Global. A estrutura institucional de cooperação, destacada pelo Programa CPLP Audiovisual 2025, foi tratada pelo coordenador executivo Mário Borgneth, que apresentou a iniciativa como um compromisso assumido pelos estados nacionais da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP).
O objetivo é “impulsionar a construção de um espaço audiovisual de língua portuguesa”, segundo ele. “O programa opera em um cenário de gritantes assimetrias socioeconômicas e busca agregar uma camada de exploração de oportunidades de negócio e ações estruturantes da indústria”, completou. O CPLP Audiovisual inclui um edital internacional de produção e difusão de conteúdos e a criação de faixas de programação compartilhada nas televisões públicas dos nove países-membros.
Para o produtor angolano Jorge Cohen, a forte influência da cultura brasileira em seu país, incluindo o consumo de telenovelas, nunca foi suficiente para fazer chegarem os filmes brasileiros nas salas de cinema em Angola. “O cinema só existe quando é partilhado”, disse Cohen. Emerson Dindo, do DiALAB, que desenvolve carreiras e projetos de pessoas negras no Brasil e no exterior, criticou o fato de que, frequentemente, o olhar brasileiro sobre a África se dá em “dois tempos diferentes que nunca necessariamente é o contemporâneo: ou é o do passado ou é no futuro”. Dindo defendeu que, para evitar uma nova colonização, é preciso que a transformação econômica acompanhe o simbólico para estabelecer o diálogo.
Estratégia crucial para viabilizar projetos e ampliar o alcance de obras audiovisuais em um cenário de financiamento escasso e competição global, a coprodução internacional voltou a ser assunto no Brasil CineMundi. Nas mesas realizadas, entendeu-se que a coprodução vai além da busca por recursos, sendo uma movimentação que pode realmente melhorar o meio cinematográfico mundial, desde que bem ajustado e com interesse realista.
O panorama financeiro e institucional apresentado em algumas falas destacou tanto o apetite internacional por projetos brasileiros quanto a complexidade dos mecanismos de financiamento. Renata Pelizon, da Ancine, falou sobre o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) como grande financiador de coproduções no país, com 65% dos recursos e investimento robusto de R$ 215 milhões no edital de 2023. Por sua vez, a França, segundo a produtora Juliette Lepoutre, explicou que o país europeu é o segundo que mais concede apoio ao Brasil, mas os pré-requisitos incluem o gasto de 60% dos recursos em território francês, geralmente em pós-produção ou serviços técnicos.
As conversas em torno deste tema, caríssimo à vocação do Brasil CineMundi como esse grande programa de estímulo à coprodução, apontaram que o tema vai além da burocracia e das cifras, e sim também de sinergia criativa e humana. Diversos produtores enfatizaram que a parceria para um filme deve ser uma escolha estratégica e não apenas financeira. Juliette Lepoutre fez uma comparação incisiva: “As coproduções são como um casamento: se você tem o feeling, se você sente isso, se você consegue tomar uma cerveja com o produtor depois, ótimo. Mas, se não, fuja, não faça”.
Os desafios práticos, como a complexidade jurídica e a circulação, também foram discutidos. Enquanto a Ancine reporta que acordos bilaterais facilitam a formalização de projetos (França, Portugal e Argentina lideram a lista de parceiros), a dificuldade de ratificação de acordos multilaterais, como o Ibero-Americano, ainda é um entrave. A produtora Joana Oliveira relatou sua experiência na direção do filme “Kevin”, uma “coprodução não oficial”, como ela disse, com Uganda, Quênia e Alemanha, que entraram sem acordos formalizados para pelo menos viabilizar o filme. Foi consenso que, mesmo diante dos entraves, a colaboração criativa e a busca por parceiros alinhados são a verdadeira força da coprodução e que permite ainda dar identidade aos filmes para além dos investimentos nele.
As conexões foram também assunto em alguns encontros do Brasil CineMundi, mostrando-se caminhos possíveis para outras possibilidades de realização. Laboratórios, festivais e iniciativas de capacitação se tornaram espaços estratégicos para o desenvolvimento de projetos, intercâmbio de saberes e articulação de políticas de internacionalização. Gustavo Jardim, realizador e pesquisador, integrante da Rede Kino, atua na interseção entre cinema e educação e promove a circulação, segundo disse, de um “cinema insistente, resistente e resiliente”. “Do ponto de vista da educação, as escolas públicas representam um dos principais acervos para se refletir sobre a América Latina”.
Para Debora Ivanov, presidente e fundadora do Coletivo +Mulheres, a luta por maior presença feminina na liderança de narrativas é urgente pois, embora elas representem 51% da população, geralmente ficam em torno de 20% na direção de longas-metragens. Ivanov identificou que a principal carência entre as mulheres líderes é a formação na área de negócios, pois muitas têm criatividade, mas não estão preparadas para o ambiente de mercado.
A busca por modelos mais horizontais de colaboração foi exaltada por Leonardo Ordóñez Galaz, integrante do comitê de especialistas do MAFF – Festival de Málaga (Espanha/Chile). “Há uma necessidade de ter que começar a recriar o criado a partir de um trabalho coletivo”, disse ele. Para Ivette Liang (EICTV-Nuevas Miradas), é importante apoiar a carreira de jovens cineastas e promover a união de grupos que colaborem entre si e criem suas próprias redes. Carlos Moreno, diretor de promoção internacional da Proimágenes Colômbia, falou sobre “curadoria compartilhada entre cinematecas latino-americanas como um modelo sustentável que permite a circulação de filmes e a partilha de custos de licenças”. Ou seja, em várias frentes dos profissionais de países diversos a questão dos trabalhos em redes de colaboração foi destacado como possibilidade de maior diálogo entre as nações latinas e a promoção contínua de culturas locais em conexão com a de nações vizinhas.
Ao insistir e reforçar que o cinema latino-americano deve se ver como ator protagonista, e não apenas objeto de visibilidade ou exotismo externo, a CineBH em 2025 tensionou as bases onde se sustenta a hegemonia cultural e propôs que a autonomia reside num misto de especulação imaginativa (o criativo dos cineastas) e tecnicalidades institucionais (apoio do Estado, fundos, investimentos etc). As redes latino-americanas são disputa e invenção rumo a um futuro que, se nos parece indefinido, surge também repleto de possibilidades e oportunidades.