IMAGENS DE UMA CIDADE CRIATIVA
O lugar criativo de uma cidade – ou de uma região – passa pelos corpos que experimentam suas rotinas, vivenciam seus contrastes e percebem suas potências, enredando um caminho que lança gestos de expressão no mundo, fabricando ideias, questionamentos e proposições. Pensar a cidade como espaço criativo é investigar aquilo que provoca suas vozes, reconhecendo as lutas e mapeando os desejos que movem o fazer artístico.
Ao observar o conjunto de filmes que compõem esta edição da Mostra A Cidade em Movimento, percebemos campos de resistência criativa que passam essencialmente pelo corpo, pelas vozes singulares que se conectam às lutas e demandas plurais na cidade. O corpo mãe. As corpas trans e não bináries. O corpo negro. O corpo mulher. O corpo que envelhece. O corpo que produz arte e por meio dela se mantém vivo e pulsante. O corpo em trânsito. O corpo periférico. O corpo imigrante. Todos corpos políticos e tantos outros que habitam um mesmo lugar geográfico com seus nós, laços e contradições.
Neste ano, a Mostra apresenta 18 curtas, um média e um longa-metragem produzidos em Belo Horizonte e Região Metropolitana, com destaque para a expressiva produção oriunda do município de Contagem. São filmes que expressam a temática Imagens de uma Cidade Criativa e abrem dispositivos para o debate crítico e propositivo acerca das marcas e desejos do nosso tempo, do nosso lugar.
Na abertura da Mostra, a sessão Presença: Maternidade Solo e Políticas de Cuidado se volta para o lugar das mulheres na criação das crianças, observando a entrega física e emocional, abrindo perguntas que ainda não têm resposta diante de uma sociedade patriarcal que invisibiliza o trabalho materno. No curta Página Três, de João Pedro Diniz, uma mãe solo se divide entre o trabalho remunerado e a atenção prestada às suas filhas – uma jovem, outra criança – trazendo as tecnologias do passado e do presente que medeiam a construção de memórias e vivências na criação materna. O documentário Cuidado Invisível, de Clara Antunes, escuta mulheres mães que compartilham suas rotinas de luta e cuidado na maternidade. Reverberando tais histórias, o filme lança questões sobre as políticas de cuidado voltadas para mulheres e mães e, ao amplificar tais vozes e apontar saídas, conecta, por assim dizer, outras mulheres que vivenciam situações similares.
A sessão Corpo-Território: Lugar de Memória e Resistência reúne filmes que expõem as marcas e lutas sustentadas pelo corpo político trans, gay, negro, mulher. Devires em movimento como estratégia de resistência, mas também de retomada. A sessão busca pensar o corpo como território, tornando visível esse lugar de memória, disputa e construção de sentidos. O filme Europa – Me Avise Quando Chegar, de Victor Vieira, abre o mapa do bairro Jardim Europa e nos aproxima de um lugar-pessoa singular por meio de imagens de arquivo pessoal. O curta documental Um Ano, de Pri Garcia, aponta uma rota de fuga e vida diante da barbárie praticada contra um corpo trans. O que se faz com as cicatrizes de uma violência vivida? Essa nos parece ser a pergunta perseguida pelo filme, a questão colocada para Coral, artista trans, baiana, radicada em Belo Horizonte, que sofreu um ataque brutal nas ruas da cidade. Depois de tudo, Coral brilhou ainda mais. Em Hemisfério Esquerdo em Fissuras, filme de Caroline Cavalcanti, Julia Teles e Walter Gam, a memória dos ataques do Estado contra os corpos manifestantes nas Jornadas de Junho de 2013. Ao imaginar uma onda sonora que afeta a audição de toda a população, o filme parte de uma vivência pessoal e problematiza a violência policial que atravessa as lutas urbanas. Em Conto Anônimo, de Sara Pinheiro e Pablo Lamar, a poética dos medos e angústias que permeiam um corpo feminino. Encerrando a sessão, o curta Edom, de Cláudio Márcio e Breno Santos, decupa, a cada cena, os múltiplos sentidos e as microviolências provocadas por uma situação de racismo. Quais saídas o corpo político constrói diante da repetição de tais cenas? O que se traduz em termos de memória e resistência? São algumas das questões evocadas por esse conjunto de filmes.
O filme Entre Vênus e Marte, longa-metragem híbrido dirigido por Cris Ventura, apresenta Ed Marte, performer, artiste e arte-educadore de Belo Horizonte, patrimônio artístico da cidade. Por meio do deboche e de investidas futuristas, o filme nos convida a uma jornada crítica e afetiva contra as forças normativas e binárias que imperam na sociedade do caos, ou também dizendo, do ódio. Para além do lugar onde o imaginário possa nos conduzir, o filme abre um conjunto de imagens de arquivo, memórias pessoais e coletivas de Ed Marte, ativista queer, militante pelos Direitos Humanos, figura conhecida e reconhecida por sua escrita festiva e amorosa na cidade.
A sessão Arte e Desejo: Corpos em Criação reúne quatro curtas-metragens que dialogam sobre a pulsão criativa que transborda os limites impostos pelas estruturas e padrões sociais, apontando a expressão artística como lugar possível para se pertencer ao mundo. O filme O Caderno de Avenca, de Aisha Brunno, torna visível uma mulher trans, artista, personagem singular. Uma jovem sonhadora, mística, bem amada e de família amorosa que desconstrói, no lugar singelo do desejo e da vida cotidiana, qualquer estereótipo lançado a um corpo trans e negro. Em Dança dos Meninos, de Gabriel Brescia, o sonho conduz a história de um jovem que transita entre a expressão artística e o sustento financeiro e familiar, abrindo diálogos sobre a cidade e seus espaços de formação profissional artística, sobre a construção de perspectivas que passam pelo corpo e pelo desejo. No documentário Pulsão de Vida, de Ana Cândida, o desejo de arte e o impulso de vida são fluidos como o sangue que corre – e dança – pelas veias de Bárbara, bailarina diagnosticada com lúpus na infância, à espera de um doador para transplante. Recriando existências e traçando caminhos de afirmação das identidades, o filme No Início do Mundo, de Gabriel Marcos, abre questões das juventudes, trazendo o amor, a coragem e a música para o primeiro plano. Produzido em Contagem, o curta apresenta o território como espaço de criação e invenção de mundos.
Os encontros, as memórias e as diferenças que conectam pessoas e gerações são dispositivos geradores dos filmes que compõem a sessão Entre(Laços) e Gerações. Curtas que propõem gestos do brincar, dançar e compartilhar a vida e, no encontro com o outro, rever lugares cristalizados, redirecionando os próprios caminhos. Abrindo a sessão, o curta Manhãs de Domingo, de Isabel Lisboa, articula conversas familiares, próximas e íntimas mediadas pelo café, pela costura e pelo fazer manual e artístico. Em 152AB, de Daniel Jaber e Jelton Oliveira, dois jovens conectam seus vazios na constituição de uma vizinhança, um espaço de proximidade, ainda que apartados por muros e realidades. O curta-metragem Cadeira Vazia, produzido na oficina Vem Aqui Criar um Filme, da Escola Livre de Artes Arena da Cultura, apresenta o desejo no contrafluxo do tempo, a cultura dos bares e da boemia feminina da cidade. De autoria coletiva, assinam o filme Angela Maria Silveira, Ephigênia Lopes, Rosângela Lererê, Beth Couto, Maria Sônia Rodrigues, Nathan Souza, Adilson Luiz, Gabriela Coelho, Lucas Rodrigues, Mônica Maria e Nato Matrix. No filme O Vô Tá On, de Clério Dornell, uma ficção sobre o envelhecer e as novas formas de se relacionar em um debate sobre o tempo do amor, ou do amor a qualquer tempo.
Além das sessões temáticas, a Mostra A Cidade em Movimento programou a sessão de inauguração do Cineclube Cardume Curtas, localizado no Terminal Rodoviário de Belo Horizonte, região central da cidade. O curta experimental Um Dia de Todos os Dias, de Fábio Narciso, traz uma problemática comum nestes anos de mostra, filmes que expõem situações de racismo e modos de enfrentamento desse tipo de violência. O documentário Igual a um Nativo, de realização coletiva, apresenta relatos de vida de pessoas imigrantes na cidade: a chegada, os trânsitos, o pertencimento ao lugar. Assinam o curta Aparecida Lacerda Silva, Alan Najara, Iarla Marques Cruz, Jhon Branco Franco Neives, Felipe Peres Nunes, Ronan Teixeira, Liliane Andrade Rodrigues da Silva e Cristiane Duarte Santos. O documentário Morro do Cemitério, de Rodrigo R. Meireles, produzido no município de Conselheiro Lafaiete, apresenta um rapper e sua arte no contexto de uma pequena cidade, abrindo espaço criativo a partir de uma voz bruta e inquieta. Jardim Tropical, de Breno Alvarenga e Luiza Garcia, discute o processo de instalação de grandes empreendimentos em territórios periféricos urbanos. As contradições que tornam visíveis distintas formas de olhar a realidade social e a luta contra os processos de gentrificação sofridos pelas cidades.
Ao expor experiências, bordas, contrastes e formas de resistência dos corpos que habitam um lugar, a Mostra nos convida a perceber uma cidade – uma região – que reluz sua potência criativa, ao passo que reverbera suas vozes mais inquietas. Assim falamos sobre enfrentamento e pertencimento, sobre um povo inventivo que escreve a história do seu lugar, que imagina e produz imagens em uma cidade criativa, ao passo que historiciza e reivindica sempre outros amanhãs.
Paula Kimo
Curadora
Sessão Presença: maternidade solo e políticas de cuidado
25/09 • quarta • 19h30 • Cine Santa Tereza
Após a sessão, roda de conversa com a presença dos diretores dos filmes e convidados.
O papel das mulheres na criação solo das crianças, a entrega emocional, as perguntas que não tem resposta diante de uma sociedade patriarcal que inviabiliza o trabalho materno. Em que medida as políticas públicas, as famílias e as comunidades prestam apoio e cuidado àquelas que cuidam?
Participação especial: Déra Otróp – palestrante e etnomatemática em Beleza Afro
Sessão Corpo-território: lugar de memória e resistência
26/09 • quinta • 19h • Cine Theatro Brasil | Teatro de Câmara
Após a sessão, roda de conversa com a presença dos diretores dos filmes e convidados.
As marcas provocadas e as lutas sustentadas pelo corpo político trans, gay, negro, mulher. Devires em movimento como estratégia de resistência, mas também de retomada. Corpas inquietas. Pensar o corpo como território é tornar visível esse lugar de memória, disputa e construção de sentidos.
Participação especial: Robert Frank – ator, músico e artista visual
Sessão Existências trans e não-bináries: amor, deboche e futurismo
27/09 • sexta • 18h • Cine Theatro Brasil | Teatro de Câmara
Após a sessão, roda de conversa com a presença da equipe do filme e convidados.
Ed Marte, performer, artiste e arte-educadore de Belo Horizonte, nos convida uma jornada afetiva e debochada contra as forças normativas e binárias que imperam na sociedade do caos, ou também dizendo, do ódio. A presença de corpas vivas e pulsantes na escrita de uma cidade criativa.
Participação especial: Túlio Colombo – arquiteto urbanista
Sessão Arte e desejo: corpos em criação
28/09 • sábado • 18h • Cine Theatro Brasil | Teatro de Câmara
Após a sessão, roda de conversa com a presença dos diretores dos filmes e convidados.
Quando o desejo e a pulsão criativa transbordam os limites do corpo e da sociedade. A expressão artística como forma possível de se pertencer ao mundo, recriando existências e traçando caminhos de luta e afirmação das identidades.
Participação especial: Henrique Limadre – ator, diretor, dramaturgo e professor
Sessão Entre(laços) e gerações
29/09 • domingo • 18h • Cine Santa Tereza
Após a sessão, roda de conversa com a presença dos diretores dos filmes e convidados.
Os encontros, as memórias e as diferenças que conectam pessoas e gerações formando laços de afeto e retomada das existências. Brincar, dançar e compartilhar a vida e, no encontro com o outro, rever lugares cristalizados redirecionando os próprios caminhos.
Participação especial: Cristina Tolentino – artista, ativista, professora,pesquisadora e diretora de teatro
SESSÃO ESPECIAL DE INAUGURAÇÃO DO CINE CARDUME RODOVIÁRIA
27/09 • sexta • 19h30 • Cine Cardume Rodoviária
Sessão de abertura do Cine Cardume Rodoviária, espaço comprometido com a democratização do acesso ao cinema brasileiro com exibições gratuitas de curtas-metragens nacionais no Terminal Rodoviário de Belo Horizonte.