LONGA JORNADA ESPÍRITO ADENTRO: 95 ANOS DE ALEJANDRO JODOROWSKY

A proposta desta edição da Mostra Diálogos Históricos é prestar tributo aos 95 anos de Alejandro Jodorowsky, exibindo seus filmes de começo de carreira, todos produzidos no México: Fando e Lis(1967), El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973). A ideia é retornar ao princípio da trajetória cinematográfica de Jodorowsky tendo por base sua forte relação com a América Latina. Esses três títulos foram os únicos dele feitos apenas no continente. Os posteriores são coproduções com outros países, como França, Itália, Reino Unido, Japão e Índia. Suas raízes latinas, porém, nunca estiveram tão integradas à obra como na trinca iniciática.

É curioso perceber ainda hoje que a singularidade na recepção a Jodorowsky apenas teve algumas alterações de perspectiva, mas permanece próxima ao passado. Seu cinema segue um mistério insondável e inalcançável, e a quantidade de admiradores e estudiosos de sua obra é uma crescente constante desde sempre. Possivelmente o enigma em torno do sentido pleno dos filmes de Jodorowsky o tenha afastado de uma identidade latina aos olhos de muita gente, ainda mais porque há décadas ele mora e atua na França e porque sua relação com a América Latina sempre foi um tanto complicada. O pesquisador e crítico Estevão Garcia, num texto para a revista Contracampo, detectou esse não lugar do cineasta a partir dos trabalhos iniciais: “Jodo foi tido como muito ‘vanguardista’ para o cinema mexicano e muito ‘colonizado e alienado’ para o latino-americano. A maior parte da crítica internacional o viu como um cineasta estranho e raro”.

O motivo para isso, segundo Garcia, é que Jodorowsky nunca foi um cineasta latino-americano tal qual colegas mais gritantemente engajados politicamente, ainda que seus filmes sempre tenham sido provocadores e políticos. A política de Jodorowsky estava mais impregnada de poesia, de metáforas e alegorias, algo muitas vezes malvisto num continente marcado por problemas tão urgentes em instâncias sociais e econômicas. “A principal razão que motivou essa percepção (sobre Jodorowsky) não foi o seu radical experimentalismo estético ou sua predileção por imagens-choque, e sim o seu esoterismo. A pretensão, assumida por Jodo, de fazer um cinema essencialmente sagrado, não foi percebida com bons olhos.”

Multiartista nascido no Chile em 1929, Jodorowsky trabalhou com circo, mímica, histórias em quadrinhos, teatro e tarô. Seu primeiro filme, inserido no meio de todas essas atividades, foi o curta-metragem A Gravata (1957), realizado na França, mas só dez anos depois ele de fato fez do cinema uma atividade mais constante. O primeiro longa-metragem foi Fando e Lis (1968), já no México, para onde se mudou em 1960 depois de se desiludir com os rumos políticos e sociais do Chile e de uma breve estada em Paris.

Jodorowsky é considerado um dos nomes-chave do movimento surrealista moderno e de inovações dramáticas, psicodélicas e espirituais que o tornaram figura lendária entre artistas das mais variadas expressões e épocas, como Bob Dylan, John Lennon, Jean Cocteau, David Lynch, Marilyn Manson, Carlos Reichenbach, entre inúmeros outros. Seus filmes são experiências ao mesmo tempo inebriantes, bem-humoradas e sensoriais, com um misto magnético de narrativa e liberdade formal que o tornam único no cenário latino.

“Na minha obra, a tragédia e a comédia dançam tango”, costuma dizer ele em entrevistas. Quando jovem, foi estudante de psicologia e filosofia nos anos 1950 e abandonou a universidade, a contragosto do pai, por não se ver como um racionalista. “Nunca foi meu caminho. Meu caminho sempre foi o da imaginação”, diz. Na juventude, fascinou-se por mímica e marionetes e se tornou um dos grandes inventores dessa expressão, inclusive tendo criado vários números para o francês Marcel Marceau, o mímico mais popular da Europa nos anos pós-Segunda Guerra. 

Ao se mudar para o México em 1960, Jodorowsky mergulhou profundamente nas artes cênicas e dirigiu mais de 100 peças, tanto na capital do país quanto em turnês por cidades do interior, em contato direto com públicos das camadas mais humildades e populares. Influenciado especialmente por estéticas pop, como música, quadrinhos e ficção científica, fundou em 1962 o Movimento Pânico, em parceria com o escritor e animador Roland Topor e o dramaturgo Fernando Arrabal, expandindo os preceitos do surrealismo e das artes do absurdo.

Provocador por vocação, Jodorowsky adapta Arrabal em Fando e Lis e realiza um mergulho romântico-surrealista ao acompanhar um casal por uma terra devastada em busca de um mítico lugar de paz chamado Tar. Filmado num preto e branco de altíssimo contraste e cheio de imagens simbólicas e alegóricas, incluindo algumas de perturbadora violência e iconoclastia, Fando e Lis foi um escândalo na conservadora sociedade cultural mexicana logo que estreou no Festival de Cinema de Acapulco. A sessão no evento foi tão tumultuada que Jodorowsky sofreu ameaças de morte, com centenas de pessoas o aguardando do lado de fora da sala onde o longa fora exibido. O jovem cineasta precisou sair às escondidas, de carro, para evitar o encontro com a massa enfurecida. O filme acabou sendo proibido no México por anos e reeditado para um lançamento internacional.

A controvérsia, felizmente, não foi suficiente para inviabilizar o trabalho de Jodorowsky. Pelo contrário: a repercussão de Fando e Lis permitiu a ele financiar seu segundo longa-metragem. O faroeste existencial El Topo(1970) tem Jodorowsky como ator principal, além de seu filho criança, que surge nu acompanhando o pistoleiro que busca justiça num deserto cheio de referências cristãs, simbólicas e espirituais. Chamado pejorativamente pela crítica Pauline Kael de “acid-western”, num devastador artigo contra o filme publicado em 1971 na revista The New Yorker, o filme incorpora elementos da psicodelia, do budismo e de referenciais de quadrinhos e cinema para acompanhar a trajetória do protagonista, que se define como Deus, protege pessoas, provoca massacres, é acolhido por uma comunidade de pessoas deformadas e sacrifica-se por excesso de culpa.

Ultraviolento e alegórico, mais surrealista que Luis Buñuel e mais delirante que Jean Epstein, El Topo não teve lançamento imediato no México e se tornou muito popular entre jovens espectadores quando passou a ser exibido diariamente à meia-noite no Elgin Theater, uma sala em Nova York que ficou lotada por um ano em todas as sessões do filme. Considerado “maldito” e por isso tão causador de curiosidade nos mais variados círculos da cidade, teve entre seus espectadores entusiastas os músicos John Lennon e George Harrison. Os Beatles tanto se fascinaram por El Topo que pediram ao empresário deles, Allen Klein, para distribuí-lo em cinemas comerciais dos EUA e ainda financiar qualquer próximo trabalho que Jodorowsky quisesse fazer.

No terceiro longa-metragem,A Montanha Sagrada (1973), feito com 700 mil dólares do empresário dos Beatles, Jodorowsky amplificou suas obsessões e interesses num épico lisérgico sobre espiritualidade e simbolismos, baseado no tratado A subida do Monte Carmelo, texto do século 16 assinado poeta católico São João da Cruz e considerado um clássico cristão da defesa do desapego. O cineasta mistura essa referência a provocações à política e à polícia mexicana, faz críticas ao consumismo e mostra mais uma jornada mística de ascensão. No centro está a figura do Ladrão, inspirada na carta equivalente do tarô. Ele acorda no deserto, une-se a um anão e juntos percorrem caminhos que os levarão a encontros com figuras representativas e alegóricas, entre todo tipo de provação para atingirem a ascese. Além do tarô, o filme se inspira em passagens da Bíblia e outros livros sagrados, ao mesmo tempo em que a liberdade, irreverência e profundidade do realizador voltam a se fazer presentes nesse que é seu filme mais ambicioso e que o levou ao Festival de Cannes.

Apesar de ter sido um tanto deixado de lado por quem não o via como um legítimo autor latino-americano preocupado com seu entorno, Jodorowsky integrava uma corrente de artistas que se mobilizaram rumo às buscas pelo sagrado justamente como resposta aos rumos do mundo. Escreve Estevão Garcia: “Não correndo atrás da moda, mas sendo elemento integrante dela, Jodo se insere no contexto de incorporação do misticismo pela cultura de massa ocorrida no final dos anos 60. Nesse momento, podemos citar como alguns exemplos a incursão dos Beatles pelo misticismo oriental e sua famosa viagem a Índia ou o estouro dos bestsellers de Carlos Castañeda. Grupos de rock como Led Zeppelin e Black Sabbath, também nessa época, se enveredaram pelo ocultismo e elegeram o mago Aleister Crowley como guru. Jimi Hendrix e Jim Morrison, no auge da popularidade, se declaravam à imprensa como autênticos místicos”.

De meados dos anos 1970 em diante, Jodorowsky fez coproduções com Itália, França e Reino Unido, ora em projetos bem-sucedidos ao seu estilo (Santa Sangre em 1989), outros com resultados fracassados e frustrantes (O Ladrão de Arco-Íris em 1990) e alguns não realizados, mas tornados referências de seu modo de trabalho (Duna, adaptação do romance de Frank Herbert que acabou sendo feita por David Lynch em 1984 e, mais recentemente, por Dennis Villeneuve num filme em duas partes lançado em 2021 e 2024). Seus últimos trabalhos em cinema de ficção foram os memorialísticos A Dança da Realidade (2013) e Poesia sem Fim (2016), ambos coproduções internacionais. Em 2019, lançou o documentário Psicomagia – A Arte da Cura, no qual trata mais diretamente sobre alguns de seus interesses que tanto moldaram sua obra, em todas as mídias, ao longo dos anos.

Tanto o espectador que já conhece Alejandro Jodorowsky quanto aqueles que tomarão um primeiro contato poderão, na 18a CineBH, ver e pensar uma obra tão especial e ainda buscar trabalhos do autor para além do cinema, como algumas histórias em quadrinhos (a série Incal, o épico Borgia ou o polêmico A Louca do Sagrado Coração são alguns indispensáveis), seu maravilhoso livro O caminho do Tarot e até mesmo as constantes presenças em redes sociais, sempre a se mostrar vigoroso e cheio de ideias estimulantes.

Marcelo Miranda
Curador

Todas as sessões da Mostra Diálogos Históricos serão comentadas por Estevão Garcia, professor, pesquisador e crítico de cinema.