UM RETRATO DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO E SUA POTENCIALIDADE INTERNACIONAL
O projeto de Bacurau passou pela terceira edição do Brasil CineMundi, em 2012, alguns meses depois da exibição de O Som ao Redor na competição do Festival de Roterdã, na Holanda. O primeiro longa de ficção de Kleber Mendonça Filho saiu do festival com o prêmio da crítica internacional e, mais importante, cercado por um intenso burburinho de que havia, ali, uma joia promissora vinda do Brasil. Kleber e a produtora Emilie Lesclaux iniciavam uma impressionante trajetória internacional.
Bacurau, no entanto, não foi o longa realizado depois de O Som ao Redor. Antes, Kleber preferiu filmar um roteiro que havia sido escrito depois de Bacurau, mas que, a seu ver, estava mais amadurecido. Uma decisão acertada. Aquarius, com Sônia Braga, ficou pronto em 2016 e foi selecionado para a concorridíssima competição do Festival de Cannes, com uma recepção para lá de positiva, que consolidou os nomes de Kleber e Emilie e contribuiu para a ampliação do espaço do cinema brasileiro contemporâneo nas janelas dos grandes festivais.
Três anos depois, enfim, Bacurau também foi selecionado para a competição de Cannes – dois filmes brasileiros selecionados em um intervalo curto, o que não acontecia há anos. Realizado em codireção com o parceiro Juliano Dornelles, o filme trazia preocupações que sempre marcaram a obra do diretor e também apareciam em Aquarius, mas com uma abordagem totalmente original. Considerada uma das sessões mais impactantes de Cannes 2019, Bacurau recebeu o Prêmio do Júri.
Bacurau, portanto, não poderia ficar de fora desta edição comemorativa de 15 anos do encontro de coprodução Brasil CineMundi, idealizado pela Universo Produção como o evento de mercado do projeto Cinema sem Fronteiras. Realizado no âmbito da Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte – CineBH, o Brasil CineMundi traz à capital mineira profissionais de todo o mundo, das mais diversas áreas do cinema, para conhecer mais de perto a produção independente do país.
A ideia é contribuir para o fortalecimento do cinema brasileiro em um dos campos de mais difícil atuação: a internacionalização. Da mesma forma, o CineMundi vê o tão temido “mercado” como um espaço que não depende só dos blockbusters de orçamento gigantesco, mas que precisa da diversidade, de visões originais, pessoais, autorais e desafiadoras. É um evento que procura potencializar os projetos fortalecendo sua musculatura, para que possam ir longe. Mas com uma escala que permite um acolhimento especial, que o diferencia dos grandes mercados de coprodução.
Os filmes selecionados para a Mostra Brasil CineMundi 2024 são um exemplo de como esse esforço, com todas suas dificuldades, tem valido a pena. A Mostra é composta por oito títulos que terão exibição em salas de cinema e outros cinco que estarão disponíveis no formato online. Não foi uma seleção fácil – muita coisa boa e de forte repercussão internacional e nacional não coube. O critério principal foi montar um panorama capaz de dar conta da diversidade dos projetos selecionados para o CineMundi e que resultaram em obras capazes de deixar suas marcas tanto na cena do cinema brasileiro contemporâneo como na cena internacional.
A mostra presencial traz duas pré-estreias. Uma delas é a de A Transformação de Canuto, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, que participou, em 2022, da seção Work in Progress – Conexão Brasil CineMundi-Tiradentes, realizada durante a Mostra de Cinema de Tiradentes, com projeções especiais de obras ainda em processo de montagem, destinadas a curadores internacionais. A ideia dessa seção, criada em 2021 – a “caçula” do CineMundi, portanto –, é ampliar o espectro do programa para além dos projetos, fortalecer as pontes entre os eventos do Cinema sem Fronteiras e ampliar as oportunidades de contato de curadores e “olheiros” de festivais internacionais com a produção independente autoral brasileira. Depois de sua passagem pelo WIP, A Transformação de Canuto foi selecionado para o IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, um dos mais importantes eventos dedicados ao documentário no mundo, e lá recebeu o prêmio de “Contribuição Artística Excepcional” da seção Envision desse festival.
A outra pré-estreia é a de Saudade Fez Morada Aqui Dentro, de Haroldo Borges, exemplo de uma trajetória mais célere. O projeto participou do 12º Brasil CineMundi, em 2021, e já no ano seguinte o filme estava pronto. Foi selecionado para a competição do Festival de Mar del Plata, na Argentina, onde recebeu quatro prêmios, incluindo o de Melhor Filme da competição internacional. No Festival de Málaga, na Espanha, ganhou o prêmio de Montagem. Saudade Fez Morada Aqui Dentro chega a Belo Horizonte enquanto Haroldo Borges apresenta, na 15ª edição do Brasil CineMundi, seu novo projeto, Ana.
Levante, de Lillah Hallah, participou do Brasil CineMundi em 2018, quando ainda se chamava Livramento (não é raro os projetos mudarem de título ao longo de seu processo de realização). O filme ficou pronto em 2023 e é o projeto que passou pelo CineMundi a conquistar a mais recente visibilidade de Cannes. O filme foi selecionado para a Semana da Crítica, mostra paralela dedicada a diretores e diretoras com até três longas, e saiu de lá com prêmio da crítica internacional. A troca de título foi mais do que adequada: Levante é um filme que mobiliza as plateias em torno da luta pela legalização do aborto, feito com uma energia intensa e que tem um impacto profundo sobretudo no público mais jovem.
Além de Bacurau, os “clássicos do CineMundi” com exibição em salas se completam com Benzinho, de Gustavo Pizzi, Tinta Bruta, de Felipe Matzembacher e Marcio Reolon, Elon Não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr., e Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro. Todos tiveram trajetórias internacionais excepcionais e foram responsáveis por deixar marcas significativas.
Benzinho, em 2018, foi selecionado para o Sundance Film Festival, evento fundado pelo ator Robert Redford para fortalecer a produção independente dos Estados Unidos, que, com o tempo, consolidou-se também como uma importante plataforma para o cinema independente mundial. A partir de Benzinho, as produções brasileiras se tornaram mais constantes no festival, sobretudo nas seções competitivas dedicadas a obras de ficção e documentários do mundo. O filme ainda revelou a atriz Karine Teles, que acumulou muitos prêmios (e assina o roteiro, ao lado de Gustavo Pizzi).
Elon Não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr., é um dos tantos exemplos da força do cinema de Minas Gerais. Selecionado pelo Festival de Roterdã em 2017, traz no elenco Rômulo Braga e Clara Choveaux, dois atores icônicos do cinema brasileiro contemporâneo, e mostra a força expressiva e a originalidade do cinema do diretor. Com uma atmosfera única, Elon foi um dos filmes que mais viajaram por festivais em 2017, chegando até o Festival de Macau, na China, então programado por Marco Müller.
Tinta Bruta, de Felipe Matzembacher e Marcio Reolon, que passou pelo CineMundi de 2014 como Garoto Neon, foi selecionado para a Mostra Panorama do Festival de Berlim de 2018 e levou o Teddy Award, o mais antigo e tradicional prêmio dado a filmes de temática LGBTQIA+, criado em 1987 por Wieland Speck. Com sua história contemporânea sobre um jovem que se apresenta na internet, o filme passou em mais de 15 festivais do mundo e venceu a Première Brasil do Festival do Rio.
Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro, passou como projeto pelo Brasil CineMundi em seu segundo ano (2011) e foi lançado em 2013, no IndieLisboa de Portugal. Situado na cena musical “brega” da periferia de Recife, o filme contribuiu para colocar o cinema pernambucano em foco e ainda revelou duas atrizes que se também se tornaram ícones do período: Maeve Jinkings (Aquarius, Bacurau) e Nash Laila (Taguagem, Corpo Elétrico, Sem Coração). Divertido, sem pudores, o filme traduz visualmente a força da cena musical que retrata.
As obras em exibição na mostra online não ficam nem um pouco atrás em alcance internacional e força estética. A Febre, de Maya Da-Rin (CineMundi 2014), filmado em Manaus, foi um dos grandes destaques do Festival de Locarno de 2019, na Suíça. Regis Myrupu recebeu o prêmio de Melhor Ator e o filme levou ainda o prêmio da crítica internacional. Los Silencios, de Beatriz Seigner (CineMundi 2013), estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2018 e circulou por dezenas de festivais do mundo e do Brasil com sua visão poética e fantástica de uma cidade situada em uma fronteira tripla, na região amazônica. Corpo Elétrico, de Marcelo Caetano (CineMundi 2012), estreou no Festival de Roterdã de 2017 e também fez carreira excepcional, revelando o trabalho de Kelner Macedo e trazendo no elenco Linn da Quebrada. Antes o Tempo Não Acabava, de Sérgio Andrade e Fábio Baldo (CineMundi 2012), foi um dos destaques da Mostra Panorama do Festival de Berlim e também recebeu o prêmio da crítica internacional dessa seção. E, por fim, Peixe Abissal, de Rafael Saar (CineMundi 2014), retrato lírico do poeta e compositor Luís Capucho, teve sua primeira exibição na competição Aurora da Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos espaços mais importantes abertos ao cinema autoral brasileiro.
A Mostra CineMundi comemorativa dos 15 anos do evento busca formar um instantâneo parcial, mas representativo, da diversidade estética, regional e de modos de produção que atravessam o cinema brasileiro contemporâneo.
Pedro Butcher
Curador