TRANSBORDAMENTOS POR TODO LADO
Se olharmos num dicionário, “vertentes” pode ter um sentido poético e multifacetado, ao refletir diferentes caminhos possíveis. “Que verte, que faz um líquido transbordar ou fluir”, ou então “diz-se daquilo que se discute” são duas acepções que se aproximam da proposta da Mostra Vertentes, estreante na CineBH em 2024. A proposta é exibir um cinema brasileiro cujo caminho já foi iniciado por seus realizadores e, por isso, provocam expectativa e curiosidade – seja pela presença de sucesso em outros festivais, por suas trajetórias ao redor mundo, pelos nomes envolvidos ou então a conjugação de tudo isso. O fundamental da Mostra Vertentes é apresentar ao público trajetórias em andamento, com suas errâncias que, por fatores diversos, trouxeram-nas até os nossos olhares em Belo Horizonte. Como um riacho que se divide em diversos fluxos de itinerários e destinos, as vertentes simbolizam direções particulares, carregando histórias, conflitos, transformações e redescobertas multifacetadas.
Nosso caminho começa pelo título há mais tempo na jornada, O Dia que te Conheci, de André Novais Oliveira. Desde 2023 o mais recente trabalho do cineasta vem tendo circulação de grande repercussão no Brasil e no mundo, culminando sua trajetória na CineBH, antes de estrear no circuito comercial e percorrer outras rotas. A vertente em questão é a do encontro transformador. Zeca, papel do cada vez mais talentoso e incontornável Renato Novaes, é um bibliotecário numa rotina que parece cada vez mais difícil de ser mantida por suas dificuldades de ânimo e concentração. Ele conhece Luísa e de repente percebe, num único dia, que suas percepções podem ser positivamente alteradas, mesmo que sem a certeza do dia de amanhã. Trata-se de uma comédia romântica como poucas vezes se viu no cinema brasileiro, ainda com a presença magnética de Grace Passô, em mais uma personagem dentro desse grande universo de tipos formado na produtora Filmes de Plástico.
Em seguida, a vertente da vez é a da introspecção e da redescoberta pessoal em Pasárgada. O filme marca a estreia da atriz Dira Paes como diretora, produtora e roteirista. Ela ainda protagoniza o próprio trabalho, num exercício artístico rigoroso que narra o cotidiano de Irene, uma ornitóloga solitária embrenhada numa floresta do Rio de Janeiro em busca de conhecimento para suas pesquisas sobre pássaros. Ela é guiada por Manuel, mateiro que parece conhecer a linguagem das aves e permite a Irene se reconectar com suas próprias questões como mulher, mãe e profissional. Pasárgada foi desenvolvido no período da pandemia e revela visão profunda de Dira Paes para indagações particulares sobre a vida e sobre a arte. O filme é um desafio autoimposto cujas camadas lentamente se formam, tanto à protagonista quanto à própria atriz-diretora.
Em Oeste Outra Vez, de Érico Rassi, a vertente da dureza e da solidão se apresenta, numa trama nervosa sobre homens no Sertão de Goiás que se confrontam em nome dos desejos de mulheres. O enredo algo anacrônico se atualiza na chave de um antifaroeste contemporâneo que visibiliza facetas surpreendentes sobre brutalidade e fragilidade da figura masculina. Os homens em cena fazem com que a dor se transforme em violência, no que expõem lutas internas e externas entre o desejo de conexão e a incapacidade de lidar com sentimentos de perda e rejeição. Se o faroeste americano tradicional mitificou a dominação de territórios e o extermínio de povos originários para, anos depois, buscar em si mesmo os revisionismos necessários na compreensão da história, Oeste Outra Vez faz caminho similar a partir de questões sensíveis ao Brasil. Seu revisionismo é o de olhar para contextos onde a macheza tenta se impor e detectar ali as profundas fragilidades e fracassos desses comportamentos arraigados, porém alteráveis.
Por fim, em Barba Ensopada de Sangue, de Aly Muritiba, chegamos à vertente da busca pelas raízes e pela verdade oculta. Adaptado do romance celebrado de Daniel Galera, o filme se ambienta na Praia da Armação, em Santa Catarina, onde o personagem Gabriel (vivido por Gabriel Leone) se envereda numa teia de mistérios envolvendo seu avô e relações enigmáticas com a cidade. A vertente aqui do desejo incontrolável de desenterrar histórias do passado e de confrontar o desconhecido para dar sentido às ruínas da memória familiar compõe a jornada dolorosa e melancólica do protagonista, pela qual o caminho ao mar retorna como uma das chaves simbólicas mais fortes no cinema brasileiro. O clima soturno se conjuga a um litoral distante do verão e mais condizente com os sentimentos de dor e apreensão que vão num crescendo a cada nova relação que Gabriel estabelece em sua caminhada.
Juntos, esses filmes da Mostra Vertentes compõem um mosaico de histórias a expor diferentes possibilidades de mostrar e de narrar, o que é também demonstrativo da diversidade brasileira num cinema de constante inquietação. A vibração de cada uma dessas vertentes é o que motiva a seleção desses títulos e o prazer de compartilhá-los com os olhares dos espectadores da CineBH.
Marcelo Miranda
Curador